A Teoria do Caos e a Medicina: Um novo Paradigma

Moacir Fernandes de Godoy*


    O procedimento analítico, sem dúvida alguma, trouxe enormes contribuições ao conhecimento científico atual. Porém, o problema da abordagem clássica mecanicista, em geral, é que considera uma determinada entidade como sendo simples somatória de suas partes individuais. Além disso, a aplicação desses princípios clássicos, depende da aceitação de que não haja interação entre as partes ou que ela seja muito fraca a ponto de ser negligenciada. Depende também de que as relações que descrevem o comportamento das partes sejam lineares, com aproximações e correções numéricas para explicar as discrepâncias.    Estas condições quase nunca são satisfeitas nas entidades chamadas sistemas, ou seja, entidades compostas de partes em interação. Assim, a maioria dos sistemas apresenta comportamento não-linear.
     Isso tudo sinaliza que o organismo humano, ao funcionar como um sistema, tenha comportamento não-linear. Os sistemas complexos não-lineares obedecem ao que se convencionou chamar Teoria do Caos, a qual estuda o comportamento dos sistemas que, apesar de serem aparentemente aleatórios, apresentam uma ordem oculta que os torna parcialmente previsíveis.
    O termo Caos deve ser entendido aqui não no seu sentido popular com conotação negativa de confusão, desordem, desorganização, desarrumação, balbúrdia, escuridão, trevas, entre outros, conforme consta na definição vernácula, mas sim no seu sentido filosófico-científico moderno, como interação entre Ordem e Desordem, entre Desintegração e Organização, que segue permanentemente numa espiral evolutiva, mas sob vigilância implacável da Entropia.
    Considera-se que nos sistemas complexos haja apenas uma quantidade desprezível de aleatoriedade e, assim, o comportamento desses sistemas é considerado determinístico. Além disso, um dos aspectos fundamentais é a sensível dependência das condições iniciais pelo qual, mínimas diferenças no início de um processo, podem levar a situações completamente opostas ao longo do tempo, o que é conhecido como “Efeito Borboleta”.
     No meu entender, a Medicina como um todo, por lidar com a interação de grande quantidade de fatores, deveria ser focalizada sob o aspecto da não-linearidade, a qual seria uma de suas principais características. Assim, pode-se considerar que as doenças ou os mecanismos fisiopatológicos em geral comportam-se como parte de um Sistema Complexo Dinâmico Não-Linear Determinístico sendo comandados pela Teoria do Caos. Até o momento, porém, os que se ocupam da Medicina têm-se concentrado preferencialmente em uma abordagem linear na qual os fenômenos quase sempre são tratados de forma estática e os efeitos são considerados diretamente proporcionais à causa, sendo pouco valorizado o comportamento dinâmico e não-linear.
     Mas, nas situações clínicas, encontramos uma assombrosa variabilidade nas condições finais com sensível dependência da condição inicial. Assim, pequenas disfunções em órgãos isolados levam paulatinamente a certos graus de disfunção à distância que progressivamente vão se associando e, de acordo com variáveis dependentes ou não de cada indivíduo, culminam às vezes em situações catastróficas como a morte.
    Na vivência médica diária observa-se com freqüência que pacientes com mesmos fatores de risco, em condições ambientais similares e com hábitos parecidos evoluem com manifestações clínicas de comportamento totalmente diverso e com respostas terapêuticas díspares. Obviamente o comportamento de massa é razoavelmente uniforme, mas em termos individuais as diferenças se tornam marcantes. Como do ponto de vista clínico é com o indivíduo que nos devemos preocupar, torna-se clara a necessidade de maior entendimento da questão.
     No organismo humano já foram detectados vários componentes com padrão caótico, todos eles relacionados com estado fisiológico, enquanto que as doenças se associam com comportamento linear ou então aleatório, criando-se com isso a implicação de que os conceitos relacionados à Teoria do Caos podem ser entendidos aos binômios Saúde-Doença em senso estrito e a Vida-Morte, em senso lato. Nesse sentido, o Caos teria conotação positiva refletindo a situação de Saúde, ou seja, o organismo estando preparado para responder favoravelmente às agressões do meio, dispondo para tanto de toda sua potencialidade. Uma vez perdida a situação de Caos a alteração progressiva da fisiologia levaria aos estados de Doença pela da entropia, até a ocorrência do Equilíbrio e conseqüentemente a Morte.
     A aceitação e aplicação na Medicina, dos conceitos aqui desenvolvidos permitem prever algumas implicações futuras: a) Novas linhas de pesquisa, altamente produtivas, deverão ser desenvolvidas procurando extrair desse terreno ainda muito pouco explorado, conhecimentos que venham auxiliar no entendimento do organismo humano em toda sua complexidade. b) Como corolário, as habilidades no terreno da matemática, o conhecimento do comportamento dos sistemas dinâmicos e das funções não-lineares e a aplicação de técnicas no domínio do caos, entre outras, deverão ser estimuladas em vista da necessidade de se entender mais completamente a fisiologia dos sistemas orgânicos. c) Do ponto de vista clínico, em face da ação da dinâmica não-linear será imprudente atribuir uma causa específica a um determinado efeito sabendo-se que nos sistemas dinâmicos determinísticos não-lineares, as influências são sempre multifatoriais. Isto trará também implicações referentes aos métodos estatísticos utilizados fazendo com que a análise multivariável ganhe preponderância nos trabalhos científicos. d) É provável que no futuro as intervenções terapêuticas sejam dirigidas à redução das interações múltiplas não lineares esperando-se que apenas mínimas alterações muitas vezes já sejam suficientes para grandes resultados benéficos. e) Medicamentos, dispositivos e equipamentos deverão sofrer um processo de reengenharia visando a adaptá-los ao comportamento caótico. Drogas com absorção ou distribuição não-linear permitindo concentrações variáveis ao invés de níveis fixos, respiradores ou aparelhos de marcapasso atendendo às leis do caos, entre outros, seriam algumas das conseqüências previsíveis. f) A Medicina Baseada em Evidências deverá receber um redirecionamento com enfoque muito maior no indivíduo que na população, reforçando a prática médica como arte e ciência. Outras implicações certamente surgirão.
     Espero que este ensaio contribua para uma mudança de conceitos, quando a Caoplexidade, neologismo criado por John Horgan em “O fim da ciência”, virá a ser o novo paradigma do pensamento científico.

    *Moacir Fernandes de Godoy é médico cardiologista e Professor-Adjunto na Faculdade de Medicinia de São José do Rio Preto (FAMERP), tendo defendido Tese de Livre Docência com o tema “ A Teoria do Caos Aplicada à Medicina”.

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